sábado, 29 de dezembro de 2018

Último Natal

Tenho esperado por uma alucinação pura, uma derrota de braços abertos,
Algo que salve o último Natal, todos vivos em si, o avô ainda surdo,
Algo claro como a evidência luminosa do Sol através de uma lâmina de gelo
Arrancada de um poço à beira de um caminho onde nunca me perdi muito,
Tenho respirado frio, mas falta-me o ar fresco do monte que ardeu,
Como a inocência do orvalho nos olhos da infância, numas couves,
Numa manhã de lareira acabada de nascer de pinhas de verão,
Tenho esperado, mas de mãos nos bolsos, na verdade, com nada conto,
A não ser com a má vontade da língua e o arrastar de olhos pelos dias alheios,
Todos, agora, os que só o meu mesmo nome conheceram.

Turku

28.12.2018

João Bosco da Silva

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Porto Ainda 

Tenho levado repetidas vezes amores à nossa cidade, 
Todos acabaram por se perder, ao contrário do que de ti 
Ainda uso em sonhos, lá fui feliz com elas, dias de Sol, 
A cidade contigo aparece-me sempre cinzenta, 
Mesmo assim preferia ter recebido das tuas mãos 
O prazer que trocamos em crepúsculos dourados, 
Estranhamente não encontro mais as nossas ruas, 
Não sei mais se é a cidade que não é a mesma ou eu, 
E tu apenas a recordação ridícula de um pedaço de caminho, 
Fundo como o vento, devias estar com o que já passou, 
Estranho-me quando penso que as espelhei no rio, 
Uma a uma, ainda com os seus sabores na boca, 
Como comparando-as com o que mais amei 
Daquela cidade, a vontade do teu desejo triste. 

17.12.2018 

Turku 

João Bosco da Silva

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Poema Sobre Cuecas

Quase me comovo, quando dobro as cuecas dela, tão pequeninas,
Breves pedaços de inocência, quantos homens lhas terão despido
E ela a levantar as nádegas, oferecendo-lhes o caminho para o mergulho,
Quase sem nomes, alguns ao menos a ideia de um país,
Quantas vezes terão humedecido em segredo, na rua,
Cruzando-se com aquela boca fácil, ou aquelas mãos brutas,
Aquele batom, aquela barba, olhares presos numa possibilidade
Que acaba por secar, uma preparacão inútil para receber ilusões,
Quem as terá elogiado antes de jazerem no chão de um quarto estranho,
Antes do alívio ou nem isso, apenas um já está, para nada, como tudo,
Umas cuecas limpas agora, encartadas, prontas para encerrar memórias futuras,
Quase me comovo com o gesto, ridículo, como escrever
Um poema assim, como quem limpa o passado da gaita.

08.12.2018

Turku

João Bosco da Silva
Trio

Lembras-te daquela noite em que acabamos por praticar boxe,
Deixaste-me um tomate negro e o olho a arranjar desculpas,
Ela veio porque disse que tinha gostado do meu casaco,
Da cor dos meus olhos, não sei, do facto de ser francês,
O namorado a perguntar porque ia connosco,
A minha barba na altura nem sequer barba,
Em tua casa ninguém na cama à espera, ela lá foi,
Quase a chegar onde hoje não faço ideia,
Tu em vez de me empurrares ponte abaixo,
Saltas-lhe na garganta, quase lhe provavas o jantar com a língua,
Houve sequer elevador, não sei, cerveja italiana,
Eu de joelhos na cama à janela a fumar um cigarro emprestado
E tu outra vez, a enfiar-lhe a língua até à alma,
Mãos dentro das calças, a olhar para mim,
Pisca-me o olho, eu cá para mim, vais foder esta merda toda,
Ela olha para mim à janela, começa a chorar,
Que raio estou a fazer, fodasse, eu nem um pouco de cinza na cama,
Bem-comportado, tenho que ligar ao meu namorado,
Eu não sou assim, ninguém é, mas todas têm sido,
Penso eu de mão limpas, não vás, bebe mais uma,
Deixa-a ir, dizes tu, depois fodes-me a bentas enquanto
Te conto sobre noites em que não me pareceu perder tanto
Como naquela, dizes que ela voltou, acredito.

03.12.2018

Turku

João Bosco da Silva
Mandar Foder

Tenho escrito sobre muito o que foi esquecido com dois dedos garganta adentro,
Tenho iluminado remorsos nos olhos que esqueceram a inocência do pecado,
Tenho desperdiçado o nome da poesia no meu medo de perder nadas,
Tenho andado a ensaiar despedidas há meia vida e nada,
Tenho perdido mais amigos do que os que tenho esquecido,
Tenho dito muito pouco com muitas palavras, e até isso é demasiado,
Tenho guardado o silêncio para quando todas as pedras me caem em cima,
Tenho sido ridículo, barulhento e tenho tido saudades de muros de pedra
Quando devia ter sido sério, certeiro e fresco como água canalizada,
Tenho pouco, cada vez menos, de mim sobra um nome,
A vontade de mais uns versos, porque me sinto escorrer pelos buracos do pão,
Um desperdício de manteiga nas torradas em casa da avó,
Tenho dito, mas nada que mereça uma encadernação de tímpano,
Cera de ouvido de burro, trompa fecundadora de palheiro do Xavelhas
Nos olhos incrivelmente pérfidos de uma infância com mãos amarelas,
Não pelas garrafas de Snappy em vidros de casa do povo,
Mas pelo cheiro a cu e a punheta em cima de fardos,
Tenho deixado divagar o copo depois de vazio,
Tenho perdido o rumo, quando me devia perder completamente,
Tenho-me agarrado demasiado tempo a erros para justificar a minha humanidade,
Mas não tenho mandado à merda o suficiente,
Não tenho mandado foder que chegue,
Espero que cheguem lá, desculpem a pressa nas curvas.

03.12.2018

Turku

João Bosco da Silva

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Urofilia 

Há coisas que nos acalmam, que nos mantêm afastados da vontade de abismos, 
Como uma cona dourada, algo que nos deixa um anel fresco de caracol quente, 
Sem ter que se ir à lenha, com o maluco da terra a espreitar por um vidro de geada, 
Uns olhos como a saudade do céu no outono com a boca cheia de ti, 
Sem se fartar, o aconchego de uma parede vermelha quando os olhos fechados, 
O sabor raro da vontade na ponta da língua, longe de lamber sêlos sem destinatário, 
A alegria de mais um fio de ouro antes de vestir umas cuecas lavadas, 
Uma estrela do mar de chocolate tímida onde cabe o mundo todo 
Nos alpes transilvânicos e depois um útero cheio das douradas lágrimas 
De alegria dos anjos do apocalipse, em tsunami orgásmico no colchão do hotel, 
Há coisas bonitas como a memória de pinguinhas de mijo em cus 
Quando ainda o tesão algo facilmente suportável como a curiosidade 
Por hóstias consagradas que não sangravam quando trincadas, 
Ainda o cheiro de quem não sabia bem quantas vezes devia passar o papel, 
Atrás da escola primária, cabia sempre, depois três rezadelas profiláticas, 
Para manter o diabo daquele lameiro longe das vacas, 
Há coisas que até nos fazem esquecer dos esquecimentos a que nos obrigamos, 
Por vergonha, por culpa, mas não tão minha grande culpa, mais a que nos foram 
Tatuando no corpinho de leitões, quando uns queriam ser vitelinhas, 
E crescer e levar com touros, acabando eles por se tornarem em touros, 
Capazes de fertilizar, contudo tão estéreis, mamando pela vida fora 
Até a cirrose provar que homens de verdade,  
Podia ter sido tanta coisa, mas não podia fugir ao garoto que tinha tesões 
Precoces quando mijava no mijo dos outros e sentia prazer 
Em limpar os bocados de merda colados à louça com o jacto inocente, 
Há coisas que acalmam, como quem nos deixa cair sobre 
barba de todas as derrotas, o excesso quente dos venenos do corpo. 

16.11.2018 

Turku 

João Bosco da Silva
S.R.T.H.M. Não Um Poema Sobre Cornos 

“E a minha vida prosseguiu, com os mesmos sobressaltos e a mesma sensação de provisório” 
Roberto Bolaño 

Nunca me habituarei a esta vida, cada novo dia, 
Sinto-me menos preparado para o amanhã 
E sei que é coisa que nunca chegará a existir, 
Deixo-me andar, mas custa-me quando vejo 
Os outros tão certos, tão confiantes, 
Como se o fim deles fosse outro que não a morte, 
Como se os amores não acabassem em tédio 
Ou num valente par de cornos de estimação, 
Também esses, invenção nossa, invejosos, 
De certos herbívoros, que procriam livres, 
Mais ainda, quanto maiores os cornos, mas isto, 
Não é um poema sobre cornos, 
Não é sequer é um poema, é uma noite solitária, 
Um copo de whisky vazio, a música de tempos, 
Não melhores, mas agora impossíveis, 
Nada melhor do que isso, daí fazermos de tudo, 
Para tornar a paz em algo impossível, 
Mas ninguém é culpado, ninguém foi ensinado, 
A primeira aula da manhã de segunda-feira 
Nunca foi, Introdução às Técnicas da Vida, 
Depois de Educação Física, nunca se aprendeu, 
Ciências da Amizade ou Sem Religião Também Há Moral, 
Aprendeu-se mais em Educação Visual 
Que nos Domingos de manhã, isto mais nos dias sem aulas, 
Depois, abelha num rosmaninho à porta do cemitério, 
E nisto a vida toda e a morte também, 
Depois de nada, pouco mais haverá de beleza, 
Além da tristeza em meia-dúzia quando sorte, 
Nunca se encontrará nada de novo, 
Seja numa rua cheia de estrelas apagadas, 
Como balões que se esvaziaram depois de cheios, 
Numa região que de tão familiar arde como Agostos 
Em casa, só os gatos parecem mostrar a verdade, 
É tudo o mesmo, às vezes ao sol, às vezes à sombra 
E ninguém gosta de verdade de chuva fria, 
Nunca me habituarei a esta vida em que cada sonho 
Uma derrota na companhia dos cabelos brancos. 

16.11.2018 

Turku 

João Bosco da Silva