sábado, 11 de novembro de 2017

Metais Frágeis 

Nos museus, as espadas que permanecem mais fiéis àquilo que eram, 
Não são as de ferro, essas parecem ter sido digeridas pelo longo 
Intestino do tempo e só com um pouco de imaginação se conseguem 
Adivinhar os cortes letais que um dia foram capazes de infligir, 
No entanto, são as tecnologicamente ultrapassadas, frágeis, 
Que mantêm a sua forma original, mais verdes, mas com a ponta ainda 
Afiada, ainda capazes de levar a cabo a sua função e apagar os olhos 
Que as admiram, fazem-me lembrar a origem das cicatrizes que carrego 
E a natureza das lâminas que as originaram, houve ferro que quebrou facilmente 
O bronze, ferro que agora se desfaz se contra a pele e a lâmina de bronze, 
Apesar de quebrada, continua intacta na memória e durará até 
Que um dia chegue a hora de fechar o meu museu de aldeia. 

Seul 

11.11.2017 

João Bosco da Silva 
Lago Baikal 

Será que quando olham para o céu à noite e veem um avião 
A cruzar o céu espelhado no lago, imaginam que vá cheio 
De sonhos desconhecidos, caras marcadas pelos anos 
Ou pela inocência, medos adormecidos ou aprisionados 
Num joelho inquieto, desejos escondidos nas luzes apagadas 
E nas portas fechadas onde tudo acontece de todas as formas 
Imaginadas, será que imaginam também o peso que os vazios 
Deixam em cada um daqueles números que um dia cruzaram 
No céu o lago Baikal com os pulmões cheios de um ar reciclado 
Por tantos estranhos acasos, como poderei escrever 
Todas as cartas quando o céu nocturno se tornar todo branco, 
Será que alguém nesta noite vê no lago uma luz vermelha 
E sabe que estou a pensar nela e no seu coração desconhecido 
Ao frio, será que sabe que não está só? 

Lago Baikal (sobre) 

31.11.2017 

João Bosco da Silva 
Quando Era Maior 

Custa-me a inocência do amor oferecido, sem qualquer apego, 
Aquela gratuitidade de dar as mãos e o corpo todo pelo momento, 
Sem uma história, uma ilusão ou a promessa de uma dor castrante, 
Custa-me a leveza das noites que no fim só eu carregarei, 
Sacos cheios de pecado que eu mesmo plantei na esterilidade do vazio 
Onde deram repouso à minha fome de o danado, 
Como que fazendo milagres em belos desertos por um segundo de miragem, 
De um quase nada, criar um eco que preencha todos os vazios e esquecimentos, 
Custa-me a inocência do amor gratuito, nunca fui bom a aceitar sem queda. 

Turku 

20.10.2017 

João Bosco da Silva 
Fome 

Com o tempo perde-se a fome, não a que mata, a fome dos vivos, 
A que às vezes nos visita em sonhos, de estômago cheio 
E as mãos da alma vazias de estrelas, apenas fogos fátuos de outros verões, 
Ninguém doente, os mortos todos uns desconhecidos, 
Com fotografias de quando nós, nem nós ainda, antes da fome, 
A que se perde, ganha-se sede, como quem engole desertos 
Para apagar solidões, por mais um verso que arranque um púbico 
Que seja à inocência dos momentos em que alguém foi nosso 
Quanto a ilusão permitiu, um cigarro fumado a meias 
Antes do esperma cristalizar na pele familiar no toque e estranha no país, 
Uma garrafa acabada numa explosão de facetas manchadas de batom, 
Tudo se perde, até a utilidade do vazio, a vontade dos sonhos, a fome que alimenta os vivos. 

13/09/2017 

Turku 

João Bosco da Silva