segunda-feira, 22 de maio de 2017

À Beira Aura Com Li Po

À beira do rio, com a biblioteca atrás e o Li Po em frente, a passar como o rio,
Sem sede, seco como o papel pode ser seco, grupos de gaivotas e de gente
À volta de lixo e do que será, tudo o mesmo adiado, uma ilusão de utilidade
Neste universo sem guião ou manual, apesar da companhia do poeta
Distante ao quadrado, saco um cigarro, acendo-o para não me sentir tão só,
Para me aproximar uma pontinha do Sol com as minhas asas de pau,
No meio daquela algazarra verde de asas e cio de primavera,
Fumo-o sem vontade, com uma amargura seca, estarei ressacado,
Ou seria o rio que me levava tudo numa osmose invertida,
Acabo o cigarro, acabo o livro e das companhias que não foram minhas
Sobram as latas vazias que mais tarde alguém irá recolher
Para comprar mais uns maços de tabaco e pagar a dívida à biblioteca.

Turku

22.05.2017


João Bosco da Silva

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Outras Fomes

ao Paulo Azevedo

Servia-nos qualquer apeadeiro de carne, qualquer sombra de pregas,
Sorrisos vendidos a medo, dentes sem cuidado nas fomes dos outros,
Servia-nos qualquer momento escondido, qualquer distração de catecismo
E num cruzar de pernas o mundo todo perdido num embrulho rápido de papel higiénico,
Qualquer vazio era desculpa para mais uma cuspidela no coração,
No próprio também, mas haviam sempre escadas rolantes para nos levar
De volta sem vergonha, havia sempre uma janela de autocarro que a levava para longe,
Para onde se força o esquecimento, mesmo que ainda se lhe saiba a morada,
Servia-nos qualquer porta aberta nesta longa noite que se nos tranca
E nos aguça a vontade, tornando-a cada vez mais fina.

Turku

10.05.2017


João Bosco da Silva

quarta-feira, 3 de maio de 2017



10 Anos

“La memoria es el amor profundo
Entre las piedras y los rios.”
Pablo Javier Perez López

Água do rio da terra corria para o Douro, a mesma água que espelharia
Dali a uns meses mais quentes as uvas que fariam o vinho que agora bebo,
O rio corria e eu corria no estrangulamento estéril das tuas virilhas incansáveis,
As folhas das videiras lambiam toda a luz possível antes da noite desabar
No teu cabelo húmido antes da festa, e o vinho 10 anos depois numa
Garrafa estranha, entrando num corpo com um cansaço familiar,
O pescador mais atento ao ranger das molas do que à boia,
Quem diria que a rolha ao saltar um dia te acertasse numa dessas promessas
Possíveis que encerravas em ti desde que nasceste, a terra ao sol
Por lentes de rubi, como a chegada que esperavas sempre que a vontade
Ia além da prevista perfeição, a água tornar-se longínqua, estrangeira,
O vinho a fermentar em cabelos brancos e murros nas paredes,
Os avós todos alimentando a fome de pó que a memória não sopra,
Tantas vidas desencontradas em madrugadas de sonhos inúteis,
Hoje neste copo de porto, à distância de 10 gerações de folhas secas.

02.05.2017

Turku


João Bosco da Silva

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Sólo debes bajar de las montañas
si tienes esperanza de volver.
Pablo Javier Pérez López

Até além Marão

Florescem as giestas –
em todo lado
perfume amarelo.

Disculpe –
diz a pátria irmã
antes de se sentar.

Estendem as palmas
para receber o ouro –
as vinhas.

As primaveras no passeio
parecem
cães sarnentos.

Na autoestrada
um cão abandonado –
deus está de férias.

A Sakura no Japão
e as Maias em Portugal –
Primavera.




Casa de Campo

Os grilos acompanham
a dança
de fraga em fraga.

Numa toca entre as fragas
ladra um cãozinho
selvagem.

Põe-se o Sol
preguiçoso
o cuco canta.

Entre um cri
e outro cri
um passo na iluminação.

Cortado pelas linhas
de alta tensão
o vento geme.

Sobre os alicerces
da infância
a casa de campo.

Além as rosas
e eu descanso
junto às batateiras.

Já nem uma flor
na cerejeira –
a beleza é breve.

Cantam os pássaros
e os grilos –
não os que na barriga.

Diz de Bashô meu pai –
“fala de tudo
o que vê”.

As papoilas
não precisam de palavras
nas pétalas.

As metamorfoses
dos figos –
engole-se uma vespa.

Acende-se no horizonte
o ouro vermelho –
batem talheres nos pratos.

Batem as trindades
no coração de pó
de Cesário Verde.




Capital

Aqui torno
a cerveja
no que serei.

Nas minhas costas
o pombo canta
por mais uma ninhada.

Que sabe da vida
o homem
que não a consome?

De tractor no peito
desço o terramoto
até à partida das naus.

Onde te esconderás tu
passado
que não tive.

Desço até ao Comércio –
fico pendurado
num pinheiro.

Toca o sino de São Cristóvão –
levantam-se os pombos
e os turistas.

Braços abertos
religiões de cimento
e a verdade no rio.

Ouvem-se os ecos
da revolução –
partem ainda os filhos.

O rio do passado
está no coração
o do futuro ainda não.

Uns descolam
outros aterram –
satori no aeroporto.

Um sol mais perto
das nuvens
mata a sede.

Lisboa – Torre de Dona Chama – Lisboa
Abril 2017
João Bosco da Silva