quarta-feira, 27 de julho de 2016

Agosto

“Quanto mais longe vou, mais perto fico
De ti, berço infeliz onde nasci.”

Miguel Torga

Quase que chega Agosto, o mês da fome farta e da loucura
E sei de cor as curvas que se desenrolam Marão acima
E o pé que falha no rio passado da infância,
Só a sinfonia dos insectos à noite, continua indecifrável
Como as companhias cintilantes que da distância impossível
Nos visitam, do horizonte virão suspiros e pestilência,
Um Sol velado e uma Lua vermelha e mais um pedaço de pulmão
Que se calcina, nas ruas estreitas um cão novo que nos ladra
E um olá antigo que será um adeus e nem se sabe,
Os figos serão as estrelas da canícula e as folhas da figueira
A companhia fiel e silenciosa que guarda nas nervuras
Todos os segredos que o corpo repousado lhe conta em silêncio,
Quase que chega Agosto e todos os regressos tão breves
Que mal se chega e logo alguém pergunta quando é a partida.

27.07.2016


Turku

João Bosco da Silva

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Sábado À Noite Pelos Olhos De Uma Gaivota

ao Jack,

Da santíssima trindade serei sempre aquela gaivota, lá no topo do edifício
A olhar as gente que sai, bêbada, sorridente a cair das escadas e não é nada
Com a cabeça a sangrar levados pelos braços de um amigo,
Aquelas miúdas quase maduras a serem levadas pela mão ou pelo pé
De quem querem, a malícia de quem tem mais fome na vontade
Do que aquilo que realmente sabem e podem comer,
Serei sempre o de sorriso nos lábios, com esperança na música
Que salva a multidão, na tarte com gelado que salva a fome,
E somos tão simples e custa tão pouco um momento de felicidade
Para iluminar todos os dias escuros, serei sempre o que caminha,
Sempre, atravessando a vida, sorrindo porque ela ainda existe
Contra toda a morte, sem medo, apesar do medo, serei sempre
O bêbado feliz enquanto bêbado, quando longe da cabana,
Do delirium tremens, das garrafas vazias, dos burros mortos,
Do Big Sur, enquanto houver música nas ruas que engulam
Os tiros da noite passada, acreditarei, que somos humanos
Ainda, que seremos seja o que a madrugada nos trouxer,
E os monstros morrem lavados pelo sangue dos inocentes,
E a gaivota voa, voa e leva o fascínio por aqueles animais
Condenados a um passo de cada vez, serei sempre o Kerouac
Da santíssima trindade, caminhando com um sorriso, bêbado,
Iluminado pela carne cheia de sonhos, de desejos, de vida.

24.07.2016

Turku


João Bosco da Silva

sexta-feira, 15 de julho de 2016

14 De Julho

Hoje, na varanda, enquanto engolia uns goles de sake à uma e meia
De uma noite clara do norte e olhava a bandeira orgulhosamente
Pendurada na varanda de emigrante, lembrei-me das primeiras bandeiras
Da minha vida, penduradas no posto da Guarda Fiscal e na aduaneira
Antes da ponte onde o meu pai comia as refeições quentes envolvidas
Em panos de cozinha que eu lhe levava, com os meus cinco seis anos,
Ele um herói de pistola à porta de Portugal, uma casa grande
Com cheiro a eucalipto e uma língua como a que se falava em casa,
Eu na altura era contrabandista de pastilhas elásticas e iogurtes,
Lutando contra a corrente do ribeiro para salvar os fantasmas
De plástico, brindes de um cromo premiado, caça-fantasmas,
Tinha a caixa de fósforos quase cheia de fantasmas minúsculos,
Todos corrente abaixo, menos eu, e do outro lado a senhora
Da mercearia galega uma língua igual à do Son Goku dobrado,
Nada de bandeiras nas pedras da ribeira que hoje atravessaria
Em três passos, hoje que um pontão e na ponte nem um bivaque,
Só o fóssil de um brasão de um lado e de outro, neste ano
Que ameaça tudo e mata mais os que de olhos no céu
Festejam a liberdade como se fosse algo que ainda exista,
Hoje, olhando uma bandeira, estrangeiro aqui como em todo lado,
Como a própria bandeira, a mesma daquele tempo em que
Ia ao pão com cem escudos e já era grande, e as couves cresciam
Apesar dos caracóis enormes e dos bolsos vazios de fantasmas,
Tão cheios de medo, não daquele medo da gabardina pendurada
No quarto onde dormia num divã, um medo de fogo-de-artifício,
Um medo de me distrair na felicidade num momento e ser
Engolido na loucura anónima que nos leva a erguer muros onde bandeiras.

15.07.2016

Turku


João Bosco da Silva

terça-feira, 12 de julho de 2016


Poema Escrito No Bilhete De Autocarro Para Ruissalo

Protege a cerveja, lembra-te do Mint 400, não és o Hunter apesar de só
Numa multidão de vontade palpitante, faminta por uns segundos de sonho,
Deixa, hoje tiveste os olhos que te merecem, uma mão redentora e sobrevivente
E ouviste os nomes de todos aqueles mortos que adoras
E ainda bem que guardaste o bilhete de autocarro, agora take the ride,
Tens ruminado tanto com fome que acabas por te digerir a ti mesmo,
Cospe o pó que ainda não és, engole mais um gole da fria,
Monta no cavalo e vai, não esperes que o Sol se ponha.

Ruissalo (Ruisrock festival)

10-07-2016


João Bosco da Silva

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Necromancer

“Na minha horta
colhendo fruta
sinto-me um ladrão”

Yosa Buson

Insisto em trazer aos versos um punhado de mulheres que julguei terem sido minhas,
Quando era eu que me deixava lá ficar todo, espalhado pela distância, cada vez mais raro,
Um pó cada vez mais fino que nem se sente, elas regressam sempre com os dias quentes,
Um perfume de quem passa, o champô na cabeça de alguém que se tenta aproximar
De um vazio pesado de despedidas com ou sem intensão de o serem,
Procuro-me nelas, uma a uma, tento reunir o que de mim ficou perdido algures no bolso
De umas calças que já não se usam ou já não servem, reconheço-lhes os sorrisos,
Os olhos parecem-me sempre mais distantes, escondidos na sombra, e nos sorrisos
Traços imensos do que a vida impôs, nos rios, encontro-as a todas, uma a uma
E passam até ao mar do meu esquecimento, onde me diluirei com todas as mortes
E finalmente deixarei de desenterrar continuamente o mesmo punhado de mulheres
Para sacudir no papel um beijo desta, o olhar daquela, o primeiro e o último,
O perfume da outra entre goles de vinho do porto, as palavras doces com que se engoliam
As promessas e as traições e o sal das peles, dos lábios perdidos nos lábios e nos sonhos
De dedos confusos que se agarram num desespero de náufrago antes da próxima onda e mergulho.

07.07.2016

Turku


João Bosco da Silva