terça-feira, 15 de maio de 2012


As Cerejas São Momentos

Sabes que entre os desejos que não tenho, que são todos, há um que quer ser
Flor de cerejeira, tivesse eu olhos para apreciar lábios debaixo das oliveiras do adro
Da igreja, à noite, e dedos finos por entre os galhos em direcção às orelhas da filha
Da peixeira, naquele ano em que perdi tudo, como em todos os outros que se seguiram,
O estômago cheio de cerejas e as lágrimas a despedirem-se contra a parede branca do
Cemitério, o inferno branco, para nos destacarmos, nós as manchas e o verão
Não passa de sabor a metal entre os dentes, as pálpebras impossíveis de pálpebras
E dizem que os anos não perdoam, tornam-nos lúcidos cansados de tanta lucidez,
Viciados em noites de menos nós, aguardente e cafés apressados quando o dia
Se estica na pele insone, no café da terra, onde conversas sobre a origem do mundo
Reescrevem o génesis e adiam o apocalipse, livros sagrados escrevem-se no esquecimento
E a verdade é tão volátil como a memória, as raízes estranham o tamanho da terra
E o tronco sente-se estrangulado entre a rocha que o abraçou em tempos,
Só flores que quase são doçura na boca, lábios, derrotas de braços cruzados,
Porque ainda havia tempo, mas com o tempo, descobriu-se que não há tempo nenhum.

15.05.2012

Turku

João Bosco da Silva