quinta-feira, 29 de dezembro de 2011


Papel De Embrulho



Os restos de uma ilusão, despojos de uma felicidade ocultada por cores, os momentos

De anos e anos de infância pelas ruas, junto aos caixotes do lixo, o cheiro a tudo

Menos a lençóis lavados, pijamas novos, como a roupa interior de uma vítima de violação,

Desprezada numa ejaculação seca, assim os papéis de embrulho, na manhã fria do dia

Começado no adiar de mais uma ressaca, na hipócrita celebração do nascimento

De bonecos de louça, que se visita como um teatro barato de aldeia, tanta cara amarela,

Tanta vergonha lavada com água benta, meditação de cabeça vazia na madeira fria,

Antes do massacre de embrulhos, bem apertados, com promessas de felicidade,

Com promessas de mais um objecto para possuir, poder, e as banhas escondidas,

Os púbicos mal aparados pela força do frio, a eternidade a fragilidade de um papel

De embrulho e o amor a fita que em mal se repara e já está no lixo

E no dia seguinte à vista de quem passa, de quem leva os sacos cheios de desperdícios

Que foram vida a caixotes já cheios e é Natal, o Sol brilha como se não houvessem

Luzinhas coloridas a piscar, as oliveiras carregadas de azeitonas, os campos sombrios

Com a geada de há dias e o papel de embrulho pelas ruas, revelando a nudez de objectos,

Expondo os lençóis manchados da ilusão, os gemidos assanhados da inocência,

Alguém foi violado na noite de consoada, as cuecas com renas são testemunhas,

O vinho foi cúmplice e as provas são dois lenços de papel usados para limpar

A palidez das nádegas perfumadas com o perfume oferecido no Natal passado,

E nas cidades há quem recolha as ruínas coloridas para forrar as casas de papelão.



29.12.2011



Turku



João Bosco da Silva


Maria Madalena



Aposto que não sabias quando te vendeste pela primeira vez, nem sabias que te vendias,

Nem que a cada vez que abrias o corpo por inutilidades infantis ao vício herdado,

Perdias-te aos poucos, pelos poros o teu suor de gemidos sem desejo, só a excitação

Trazida pelo pecado, os pêlos brancos do seu peito envelhecido contra a tua adolescência

Perdida em tantos bancos traseiros como negações que tu cultivas antes de adormeceres,

Para conseguires acordar de manhã acreditando que ainda dona de ti e dos teus desejos,

Quando herdaste todas as maçãs, todas as cabras, todos os adereços da tua religião,

E no fim não consegues ocultar um olhar esmagado por esperma doente e vazio,

Pela resignação aos desejos inúteis de mostrar, ao desejo perverso de quem é teu dono

Até perderes a juventude do teu cabelo, o olhar enrugar a palidez à sua volta,

A tua frescura rasgada por berros de filhos com quem calhou, porque o tempo,

Nunca te dará de volta o que trocaste por pequenos nadas, porque o tempo não perdoa

A quem se vende como se a vida não fosse a eternidade que nos dão, e não consigo ter pena

De quem herda abismos, de quem se deixa levar pela tradição como uma puta por uma nota.



29.12.2011



Turku



João Bosco da Silva





Deus Da Minha Infância


Aquele quadro do sagrado coração de Jesus no quarto dos meus avós, ainda hoje me faz

Questionar, como pode um pedaço de papel seguir-me com o olhar, vou para a esquerda

E ele olha-me, vou para a direita e lá está ele, deve ser um truque à sorriso da Mona Lisa,

Num papel barato, talvez um calendário que a devoção da minha avó emoldurou, seja

Como for, não presenciei a mais nenhum milagre senão este, um olhar de papel que muitas

Vezes atenuava a minha curiosidade em relação ao que as minhas primas tinham entre as

Pernas, quando afinal, aquilo sim era a criação do mundo, a origem da vida, a razão da vida.

Naquele tempo deus era o pai dos meus avós, além deles só um homem eterno e sábio

Em rugas, os meus bisavós, só fotografias retratos em lápides no cemitério e nomes que hoje

Não me lembro, mas basta visitar o cemitério e lá estão, agora deus, nem uma lápide,

Um velho que nunca vi e não acredito que tenha sido ele o do olhar de papel que segue

Miúdos no quarto dos avós, enquanto eles tentam encontrar respostas além da roupa interior.






19.12.2011



Helsínquia



João Bosco da Silva