domingo, 18 de dezembro de 2011


Crónica Do Quarto Frio


Rua do Almada, 2003


Naquele quarto frio na cidade envelhecida, suja, prostituída e transvestida, com uma fome
De gente, a procurar-me desesperadamente em palavra que nunca ninguém lerá
E até eu tento ignorá-las em ficheiros esquecidos, todas elas o caminho para isto,
Sacrifício de carne, suor, esperma e sangue, por uma alma violada pela solidão
E pela melancolia, com uma sensibilidade treinada no silêncio de paredes húmidas,
Enquanto pedrinhas nas janelas e serenatas, as mantas a crescer e a cobrir a cabeça,
O dia encerrado e ainda tantos anos por viver, tantos para viver levado pela força da juventude
E só depois me tornei espontâneo, só por deixar de esperar seja o que for.
Aprendi a escrever para ninguém, aprendi que todos os poemas que tentam ter
Uma utilidade, são os mais inúteis, aprendi que os poemas dirigidos a alguém, nunca chegam
E caem ridículos a meia distância, aprendi que a poesia é apenas o resultado do que a carne
Passou, a destilação da vida em palavras e nunca a própria vida, por isso há tantos poemas
Feitos de palavras mortas por aí, como se as palavras não tivessem um significado,
Um peso, um cheiro, uma extremidade afiada, um punho abstracto que se sente inesperado.
Aquele quarto só hoje pode ser poema, aquelas pernas nas aulas só hoje podem ser palavras,
A mini-saia de pregas e as meias de liga, o descruzar e o que eu te faria a querer ser poema,
Mas na verdade apenas uma vontade que se alivia na hora do almoço, e um ar mais calmo,
A colega ao lado, não me digas e era verdade, e hoje, quando não se espera nada,
Acende-se um cigarro na sala de fumadores a um hippie anti-corporativo que diz escrever
Música, eu sou poeta (porque os anos já me deram esse direito) e a loira ao lado,
A irradiar frescura e oxitocina, como estás e eu bêbado, és poeta e eu bêbado, Bukowski
E ela a sério, eu a desconfiar se de verdade, “não tentes” e ela sem perceber, o que ele disse
E ela ainda sem perceber, Keroauc, Ginsberg, a loira parece compreender o meu ombro
Com as sua mãos, os lábios demasiado próximos como se ouvisse com eles, o cigarro quase
No fim, uma hipster além de qualquer desejo, daqueles monumentos que se admiram numa
Rua de Estocolmo, a procurar os lábios de um bêbado que escreve poesia e tem preguiça
De fazer a barba, demasiado cansado para aceitar um beijo anónimo de um quase sonho,
E os lábios doces, como se o pescoço fosse capaz de sabor, deixam uma frescura a latejar,
Para no fim se acabar a noite a masturbar alguém contra um plátano à chuva,
Sem noção da madrugada, dos carros que passam, em baixo, na Rua do Almada,
Há quase uma década, muitas vidas atrás, na companhia de palavras vazias e desejos hoje memórias.


18.12.2011


Turku


João Bosco da Silva