sábado, 20 de novembro de 2010



“Mind The Gap” (No Metro 2)


Entram e saem na Babel metálica que atravessa o submundo,

Olham-se e esquecem-se no momento em que se dão conta da cor dos olhos,

Ouvem-se e estranham-se, pés à cabeça, cabeça aos pés e nunca mais,

As portas abrem-se para os túneis do formigueiro até à superfície e adeus.

O senhor com a companhia do jornal nos joelhos a olhar os jovens

À sua frente, cheios do que antes foi dele, não os inveja,

Sente saudades dele mesmo, um que perdeu e aperta o guarda-chuva

Com uma felicidade triste, longe, num mundo só dele, mais pequeno.

Uns correm, empurram-se, nunca chegarão a tempo,

Temem as horas marcadas, limites fictícios, quando só há um

E é o mesmo para todos e é certo e inevitável, abrem-se as portas e engolem-se

Mais uns quantos para a superfície, outros entram vindos de não sei onde,

Para não sei que estação, por não sei que razão, andamento, não param,

Nem se sentam, mesmo quando a hora não deixa, e obrigam a uma proximidade distante.

Encostam a braguilha, roçam as virilhas uns nos outros, orgias enlatadas,

Desconhecidos com vontade de desconhecidos, estranham-se e querem-se.

Abre-se mais uma vez e eu não sei ao certo se vou na linha certa,

Avisam “Mind The Gap”, não vou sair aqui, acho que ainda não é a minha estação,

Vejo, sou olhos para a vida, sou os olhos nesta Babel de milhões de corpos.

Olham discretos, bem vestidos os que querem só o que os teus bolsos levam.

“Mind The Gap”, ninguém ouve, ninguém ouve de verdade.

Alguém chora enquanto olha o vazio de fora, as luzes pequenas, uma linha,

Uma linha que se cortou, outra vida morta nesta, as portas abrem-se,

Leva as mãos aos olhos, enxuga as lágrimas, levanta-se, sai e deixa no rasto a tristeza,

Perdeu algo, perdeu-se um pouco, a vida é perder até ao limite, até não se poder mais.

Sei que no fim isto irá vazio, metro vazio, pelas tripas da cidade morta,

Até ao infinito, fantasmas de mil línguas, mil cores, mil dores,

Atravessando o vazio em direcção a um nada que os preenche, ou não.

Tantos de pé a ler, um sonho dentro de um sonho na cabeça de alguém,

Mas nem tanto, um mundo que entra e se constrói.

A mim chega-me a poesia dura disto tudo, o suor azedo de quem se senta ao meu lado,

Veio a correr, morrerá deitado, cansado, vazio e amargurado,

O cheiro que me trinca o lábio inferior de umas leggings pretas, param, de pé,

À frente da minha vontade hoje triste pela dor do mundo que entra e sai,

Francês, oui, je t´aime e há mentiras que sabem tão bem quando só o corpo fala.

“Mind The Gap”, ninguém vê, ninguém vê de verdade.

Todos passam, olham o que estará à espera, dentro de uns minutos,

Umas horas, nunca o verão, os olhos são para agora, aqui, esta multidão perdida

Nas entranhas escuras e tristes, cabos eléctricos, quantos mortos em cima,

Quantos anos de fracasso e desilusões nuns metros cúbicos de metal em movimento

E “Mind The Gap”, mas haverá mesmo, nesta Babel onde todos falam uma língua comum,

Onde todos correm, e se sentem, nem que seja por um momento,

Corações acelerados, cansados, adormecidos, feridos, congelados, partidos,

Todos com um. Às vezes, pára um e fica até ao fim da linha, não acorda,

Não saiu pelas suas pernas, ficou e a eternidade já o esperava há muito.

Alguém come, alguém tem fome, ainda não teve tempo, ainda não arranjou trabalho,

Ainda não pagou a renda, ainda não perdeu os dez quilos para caber nas tais calças,

Ainda é cedo. Alguém grita que deus é grande e tarde demais.

“Mind The Gap” e não consigo perceber onde, até gosto do cheiro azedo,

Gosto da tristeza, dos sorrisos solitários, quase loucos, dos olhares penetrantes,

Verdes, azuis, castanhos, pretos, pérolas que escondem línguas doces,

Sovacos quentes por baixo de braços obesos, caras tapadas pupilas dilatadas,

Guarda-chuvas com cheiro a cão molhado, gente com cheiro a guarda-chuvas,

Italianos a quebrar o silêncio, o doce perfume da Babel horizontal.

Mais uma vida que acaba, “Mind The Gap” e olho para o chão,

Antes de sair, de mais um fim, para um início com eternidade falsamente prometida.



20.11.2010

Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva