terça-feira, 2 de fevereiro de 2010




A Canção do Que Nos Leva




ao “alambique”




A gente que não quer sair do mesmo lugar,
Só para parecer que o tempo não passa,
Mas os cabelos brancos a lembrar-nos que sim,
Os avós a morrer a dizer que nós também,
Os pais a tornar-se avós porque o tempo a obrigar-nos,
A vida a ser encostada à parede até ao outro lado,
Aos poucos, mesmo que no mesmo lugar.
A gente que pensa que o tempo para passar
Precisa que o espaço mude,
Então ficamos, iludidos, sempre no mesmo lugar,
Diferente nem a cada dia, a cada momento.
Uma flor nova, uma árvore que morre e se corta
(Para sempre nas tarde debaixo da sua sombra),
Uma adolescente que agora mulher e os olhos que já a vêem
(Ainda no baloiço de sua casa, protegida do mundo, pequenina).
Uma casa que ainda ontem era nova e hoje vazia
(Com os emigrantes que nunca estão de verdade),
Outra que sempre velha e vazia e hoje com pequenas pessoas
Que ontem não existiam, mas que ontem?
Seremos sempre o de há momentos,
Sempre o acumular do que já passou,
Contra a nossa vontade.
Se tudo fosse para sempre quando tudo perfeito...
O tempo a desorganizar, a tornar o mau pior,
A sujar a inocência e a torná-la pecado,
Como se a culpa fosse nossa!
Os amigos de todos os dias, que se tornam de todas as semanas,
Se tornam de todos os anos... até que depois só recordações,
Longe no tempo, impossíveis no espaço,
Sempre presentes no que somos, sempre o de momentos.
Como retalhos de gente a gente,
Retalhos do que já não é nem nunca será.
A gente que não quer ir, que quer ficar,
Mas o tempo empurra, o tempo a empurrar,
Até as palavras, para o fim, para o início da eternidade...


01.02.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva


As Memórias Do Amanhã Longínquo


As memórias, os sonhos cumpridos que perduram no momento,
Sempre incompleto, sempre o único possível.
Deixo o roupão cair e continuo a caminhar em direcção à água,
Entro no lago do esquecimento e o roupão vazio de quem o usou.
Assim seja, assim será e eu sem deus, eu sem esperança no vazio.
Eu que me dispo tantas vezes contra os olhos
Que me olham com repulsa e como desnecessário,
Que insisto em mostrar a ferida ridícula,
Crónica que naturalmente se esconde,
Que se me calo morro e se falo sujo o nome da minha morte,
Eu que não sei onde quero chegar porque não sei de onde vim,
Não serei algo?

Afunila-se o horizonte, apesar de ser o mesmo,
Invisível aos olhos, tão grande nos que estão voltados para dentro.
Morreram-me todos e fiquei só no passado que trouxe escondido nos bolsos...
Rotos, enganos que no fim me dão o vazio.
Iludo-me com o meu tamanho
Enquanto me canso a olhar para cima, para os deuses que não existem,
Tão leves e vazios que o ar os eleva.

Entro em mais um café e é a mesma história que se esquece e nunca parece repetir-se.
Tomo as cores do que bebo e sou mais os outros que eu,
Encostando com uma avalanche de euforia o estúpido racional que me rói a vida dos dias
Aos confins da alma onde não chego.
Sento-me até me sentar em cima de mim, sem querer saber das aves de rapina
Que me querem comer os cadáveres sem futuro.

Deixo-me entrar como se tivesse escolha.
Deixo-me ir como se houvesse outro caminho.
Deixo o roupão e sou só os ossos pouco cobertos que me dão a ilusão de uma estrutura.
Viagem sem destino, pelo caminho que não passa,
Onde se acumulam os fantasmas das virgens belgas stripers,
Dos avôs amarelecidos pelo tempo,
Dos pais longínquos a tornarem-se nevados contra a nossa vontade
E as feridas das garras do tempo que nos empurram para lado nenhum.

06.11.2009

Savonlinna

João Bosco da Silva