quarta-feira, 31 de março de 2010


A Casa Que As Heras Esconderam


entre São Gregório e Pontes Barxas




Quase irreconhecível, com as suas paredes escondidas
Pelas heras do esquecimento, com o seu verde escuro e brilhante se sol,
Mas só o cinzento no céu a dizer que o ar húmido,
Quase à beira lagrimas, quase a fazer-me entrar pela porta entreaberta
De casa abandonada, com uma escuridão cor de pó no interior ,
À espera de ser redescoberta dentro, anos de distância que se acendem.
Anos de heras a esfarelar as paredes de granito,
Erguidas no tempo da ditadura e das fronteiras fechadas,
Como se as linhas dos mapas muros reais feitos por gente com línguas diferentes,
Com o mesmo ritmo dentro, quente, vermelho, orgânico e visceral.
Envelheceram, morreram, foram levados para longe do fim do mundo,
Os que ali viveram, antes do esquecimento cobrir aquelas paredes,
Com histórias de contrabandistas, noites longas entre dois mundos,
Que se encontraram para nunca mais.
Só o rumor do rio o mesmo, a vibrar também nas paredes,
Como ossos roídos pela osteoporose,
Com a rua lá fora cada vez mais estreita, agora que não há quem lhe dê passos
Na calçada a dizer que gente, que olhos nas janelas e olhos atrás das janelas,
Entre cortinas, hoje esquecidas do branco que foram, amarelecidas,
Pelo tempo e pelo esquecimento, à sombra das heras,
Que cobrem de verde com uma esperança irónica e inocente de natureza.
Só dentro as paredes limpas, se os olhos fechados,
Só dentro as vozes dos vizinhos, se só o rumor do rio que corre perto,
Tudo ecos de pedras que agora caídas, aleatórias e quase sem sentido,
Paredes cobertas pelo esquecimento.

31.03.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

terça-feira, 30 de março de 2010


No Metro


inspirado no amarelo e cinzento


As portas abrem-se e atrás das minhas costas o desconhecido,
Vazio como a escuridão imensa da minha ignorância.
Passos de quem entra também, um toque de quem tem pressa,
Um empurrão de quem não me sente como verdade.
Procuro um lugar, sento-me e espero pelo movimento que dá início à viagem.
Espero, com o meu monólogo interior, passeio dentro,
Enquanto vejo o espaço lá fora, quase cores, a passar,
Quando na verdade sou eu que passo, o metro passa,
Eu que passo no metro.
Gente a falar com a gente se dois que se conhecem lado a lado,
Ou de pé se a viagem for breve, ou porque não havia lugar.
Uns que se beijam além, jovens que ainda acreditam no para sempre.
Outros que se beijam ali, sabendo que nesta cidade ninguém os conhece,
Fugindo da prisão dos seus dias em direcção a um hotel barato.
Aquele com a mão no bolso do outro, sem carteira,
Com uma surpresa à espera na hora de pagar o café.
Uma mulher com uma criança nos braços a ser mãe,
Enquanto ao seu lado um idoso se curva sobre si mesmo,
Com o peso da dor acumulada sobre as costas frágeis.
Este aqui a ler, a ser dentro o que o dentro de outro lançou para fora,
À sua maneira.
Eu nada. Olho, faço desenhos no ar com a cabeça, sem me aperceber,
Os olhos como se um nistagmo horizontal a tentar seguir as cores lá fora,
Que fogem sem ter percebido ao que dão a cor.
Eu nisto, a olhar, à espera até que o metro pare,
Até chegar à estação onde terei que sair.
Pára, levanto-me, abrem-se as portas, saio e chego ao Nada.

30.03.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

Ao Pai

ao meu pai

Quando chove e nem uma gota na cabeça,
Levado pela mão com o casaco dele a cobrir menos os pés,
Apenas o cheiro da sua roupa nos olhos e uma escuridão segura,
Porque a mão a guiar-me os passos molhados.
Eu tão perto da sua cintura, um dia que serei maior, mas nunca tão grande.
Nunca terei umas mãos capazes de guiar no escuro de uma tempestade,
De abrir a terra e sempre com a timidez de uma carícia que só dentro,
Longe do granito áspero que as cobre.
Aquelas mãos e o cheiro do único deus real e possível debaixo do seu casaco,
Numa tarde de fim de verão, depois de deixar as armadilhas aos pássaros.

Queres vir comigo aos pássaros,
Porque ele quando pequeno gostava de ir aos pássaros.
Eu pequeno, eu um ele pequeno que nunca serei,
Cá dentro outro, que ele estranha, alguém novo na sua vida,
Eu que sempre o tive desde que abri a cor dos olhos.
Um dia com o filho
E eu a pensar que era por ele,
Porque ainda gostava de ir aos pássaros.
Subir montes, rasgar urzes, estevas, giestas, silvas,
Cruzar pinhais onde se adivinham cogumelos,
Levado pela mão criadora, que todos os nomes sabe.
A chuva a dizer que nunca mais e a tornar um só dia
Num dia maior.

Aquelas mãos que nunca lançaram comentários ao vento,
Nem críticas ao silêncio,
Incapazes de ferir por dentro.
Um muro de pedra a cercar um lameiro verde.

Pões isto na cabeça que ainda apanhas uma pneumonia,
Vindo de outro tempo, de outro mundo mais fatal,
Em que se ia aos pássaros, já que não havia muito mais para fazer,
Nem sobrava a carne na mesa.
Aquelas mãos forjadas na dureza,
Capazes de guiar uns pés pequenos, inseguros, no início de uma caminhada,
Que não se sabe se longa, até à escuridão inodora.
Pai é quando chove e nem uma gota na cabeça.

30.03.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

domingo, 28 de março de 2010


*

Dizes que vês a vida na água
Que corre fresca e limpa na agueira.
Na agueira só vejo folhas de salgueiro
Que passam e estão mortas,
Insectos que lá caíram e ainda lutam,
Outros que lá vivem com outros animais
E um fundo de terra através da fina transparência da água.

Bebe um golo fresco de água
Sente a ponta do nariz dentro da frescura,
Todo o teu peso nos joelhos enquanto te ajoelhas
E te inclinas para beber.
Não vejas a vida,
Sente a vida!

Se vês a vida na água,
Bebe-a,
Mas bebe-a com goles lentos.
Sente no esófago a passagem refrescante a cada trago,
A água a descer,
A aquecer na descida até se tornar parte de ti.
Tu és a vida!

28.03.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

Poema para “Disse-me António Montes”

quinta-feira, 25 de março de 2010


Fazem Falta Lameiros

Fazem falta lameiros, frescos, verdes,
Dos que se inspiram pelas costas quando deitados,
Os becos escuros com o cheiro a mijo,
Onde o sol se esquece de visitar, na cidade,
Uma terra lavrada e o castanho no ar,
Antes do estrume nos cortes que o ferro lhe abriu,
Antes da ferrugem, do verde cobrir todo o trabalho do homem,
A chuva levar o cheiro a mijo dos becos escuros,
Os homens de verde levarem os preservativos esquecidos
Nas escadas antes dos olhos se abrirem, de manhã,
O musgo das fragas onde se dorme de olhos abertos dentro,
Com o peito a aquecer os olhos,
Antes do rio ter uma cor de mortos e meter nojo à pele,
Antes das ruas cinzentas de tantos passos sem sentido,
Sem serem sentidos em direcção a um nada,
Que mais tarde não dá lugar a arrependimentos,
Só o vidro do carro a abrir e um preservativo apressado
Nos bancos traseiros pela janela fora,
Dissolvido na escuridão, na água do rio que passa,
Em direcção a ruas com becos e cheiro a mijo,
Só porque fazem falta lameiros e o cheiro a cavalo suado,
Com o latex entre o indicador e o polegar,
Como um lenço dos de dizer adeus, e adeus mesmo a muitos impossíveis,
Antes do cheiro dos cafés a abrir o dia,
Quando para muitos se fecha até às quatro da tarde,
Com a pele cheia de cheiros a peles e a vícios,
Contra a escuridão de um beco,
Só porque fazem falta lameiros onde o peso dos corpos fica,
Até a erva se erguer de novo a dizer que ali ninguém nunca,
Nem a chuva que obriga a mão no vazio além do interior,
Com cemitérios a deixar luzes tristes e frágeis para lembrar a vida
Que se deve inspirar sempre que se pode,
Mesmo vazio num beco escuro, com o mijo a picar o nariz,
Como a água dos rios da cor dos mortos vinda de terras onde vacas e lameiros,
Carros parados até pelo menos um orgasmo, um indicador e um polegar,
Um abraço de prache e um beijo de rotina antes de se levar a casa,
Porque o coração não precisa de carnes quando há lameiros,
Só dentro o peso a quere
r sair, no beco escuro se ninguém a ver,
Quando o mundo todo da cidade a dormir, menos os homens verdes,
Que piscam, pirilampos a acordar os padeiros para o pão,
Mesmo que as searas longe do trigo que se vende irreconhecível,
O fumo de dois corpos, invisível a encher o espaço pequeno do interior do carro,
A espalhar-se pelo ar quando se tocam e um derrete para outro se perder dentro,
Para depois um indicador e um polegar a dizer que humanos,
Numas luvas amarelas a dizer “estes caralhos”,
E nem um lameiro onde se sintam vacas suadas com o sol a fazer brilhar o sal da pele,
Que se lambe em desespero para sair por momentos,
Do inevitável cemitério inadiável,
Quando basta um lameiro rasgado e um esquecimento mais sincero,
Longe de becos a cheirar a mijo e vida que não se faz,
Só se fode com um egoísmo de “se pudesse, só me vinha eu”,
Mesmo que os pirilampos digam que “estes caralhos”,
Sem ver o recibo a factura, aquilo uma factura perdida no escuro,
Tanto sol no lameiro, vazio de gente, verde, fresco,
A fazer lembrar pernas abertas com a mesma vontade do sol a brilhar.

25.03.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

segunda-feira, 22 de março de 2010



Uma Cerveja No Cemitério

O rumor de umas chamas que persistem nas velas,
O cheiro do ar quente na terra que arrefece a sua cor,
O quase silêncio, não fosse a vida a fazer festa ao longe,
Esquecidos disto aqui, onde me refugio das luzes,
Da minha cara na cara dos outros.
Trouxe companhia para vos acompanhar,
Já que estamos sós se só eu convosco.
Trouxe a companhia que traz a quase felicidade,
Não fosse engolida a golos desesperados,
Como quem apaga a luz para se afogar nas trevas.
Aqui estou, porque só vós me ouvis quando grito em silêncio,
Só vós nunca me conhecestes, nem conhecereis,
Eu que vos tenho dentro, apesar de incompletos,
Da falta de nomes, as faces que só um círculo pequeno no granito,
A de um dia que não esperava que ficasse para os do futuro,
Que ficasse para um sempre relativo.
A pedra ainda quente, a tocar-me de granito,
Onde me deito, de onde normalmente ninguém se ergue,
Com o copo na mão, apertado, a fazer-se sentir, ainda fresco,
A mão que quase pende, quase perdida no vazio cintilado por velas
Que insistem em marcar presenças ausentes.
Ergo-me em provocação, com a cruz de pedra atrás a ser pequena,
Ergo o copo e bebo, bebo à vossa, à minha por que vós possíveis um dia,
Apesar de hoje a tornar-me esta solidão quase impossível.
A vós vos trago dentro, atrás, no passado que não vivi na vida.
Não me conheceis, mas sou um daqueles que muitas vezes imaginastes,
Se um dia chegásseis lá, aqui, onde me sento,
Com a vida a correr por entre os dedos,
A sentir-se nas têmporas a cada segundo do tempo do corpo.
Sou o resultado sensível da vossa actual insensibilidade,
O orgão que toca a realidade, o que vos não deixa morrer por completo.
Hoje, dia de festa, esquecido o mundo do mundo que foi,
Dos que inventaram as festas para esquecer o silêncio,
A escuridão entre paredes nuas, debaixo de pesadas pedras,
Ou pequenos montes de terra de onde arrancam o verde,
Por que ali já não há esperança,
Bebo a minha cerveja antes que a vida a aqueça,
Na companhia dos que nunca conheci e foram vida antes de eu a conhecer.

22.03.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

sábado, 20 de março de 2010



Bom Dia

ao Carlos, César, João, Sebastião, Paulo e Rui

Com o peso de todas as preocupação nas alças de uma mochila,
A manhã que começa com o cheiro a café, torradas e leite.
Bom dia e sente-se de verdade, porque se sente a frescura de mais um dia,
Naquele momento nunca poderia ser mau dia,
Ainda se espera algo de novo, é certo ter-se algo de novo no dia,
Quando as preocupações todas dentro de uma mochila.
A manhã abraça-nos, fresca, cheia de portas abertas, de sonhos,
Como se fossemos os especiais, a esperança de um mundo que não cresce.
Dos paralelos até à rua principal, passando pelos cafés que acordam,
Com as vassouras a dar os primeiros retoques,
Como o pente e dedos molhados a dar os últimos,
A deitar aqueles cabelos que insistem,
Porque há sempre quem insista, quem queira fazer a diferença,
Quem vá contra, até que vem uma mão cheia de gel, marcas do tempo.
Com pedaços de felicidade à espera no átrio,
Para mais bons dias sinceros, de coração cheio e inteiro,
Com o cheiro branco da geada a fazer doer as orelhas e o nariz,
E eram todas as dores que tinhamos.
Pedaços de nós que ainda não reconhecemos,
Mas um dia, esta parte de mim é dele,
Aquela dele é minha, até que o pó vem e cobre tudo,
A tinta passa e faz-nos esquecer o que fomos, o que somos, por baixo,
O que eramos quando a mochila era o único peso a fazer peso na vida.
Entra-se pela porta com menos vontade do que com a que se sai,
Apesar de se saber que se vai sair a ser mais por dentro,
Aos poucos mais pesados, com um peso que não nas alças,
No pescoço, irradiando para os ombros, para as costas, para dentro,
Onde se começa a duvidar que more lá uma alma.
Aos poucos e com o tempo a inocência que torna tudo leve,
A esvanecer-se, a ser apagada pela luz que nos apontam aos olhos,
Como num interrogatório, a ver se somos gente.
Que venha o toque e uma pausa para falar à vontade,
Para completar o que somos com os que somos também,
Aqueles primeiros, os pedaços de felicidade com quem partilhamos o mundo,
O que se espera dele, sem saber que pouco nos espera.
Bom dia, e ainda temos muito pela frente,
Um dia inteiro de cada vez, até chegarmos lá,
E uma vez lá... onde é lá?
Aulas constantes onde é tão difícil acompanhar as vozes,
Testes todos os dias, tão difíceis, tão inúteis,
Para poder ter isto, que nunca quis quando o Bom dia sincero,
Isto que nunca sonhei quando acordei uma manhã para enfrentar mais um dia,
Tão igual e tão diferente aos dias anteriores,
Com o cheiro a café, torradas e leite,
Em baixo na cozinha à espera, com um Bom dia sincero à espera,
A manhã depois da porta à espera, com um abraço de Bom dia,
Os que me são no átrio à espera, com um Bom dia em coro,
A sala à espera, com um Bom dia sábio,
O intevalo à espera e nós à espera dele, é um Bom dia.
Intervalos que se tornam cada vez mais curtos,
Cada vez mais raros, de semana a semana,
De mês a mês, de meio em meio ano, de anos a anos,
Até que só um nome, uma doce recordação, um pedaço de nós,
Cada vez mais longe, cada vez menos visível, debaixo de tanto lixo,
A pesar no que somos, a esmagar o que fomos,
O que fomos capaz de um Bom dia sincero, com esperança,
Com as mãos cheias de nada, esperando com elas agarrar a vida,
Conquistar o mundo, que afinal, não vale a pena conquistar.

20.03.2010

Savolinna

João Bosco da Silva

sexta-feira, 19 de março de 2010



Liberdade

a Christopher McCandless

Não sei o que me dizem os olhares silenciosos,
Que se cruzam comigo sempre que estou na rua.
Não me chamam pelo meu verdadeiro nome,
Não sabem o meu real tamanho, mas continuam a afirmar,
Que eu isto e eu aquilo, quando eu nada do que dentro deles.
Não me dizem para ser livre,
Dizem-me que esperam que eu seja assim e de outra forma,
Porque esperam que assim seja,
Como se deuses, eles todos, uma massa a fazer de deus,
A enganar-me com um livre-arbítrio falso,
Quando só posso escolher entre o que eles oferecem.
Não sei o que os olhares esperam,
Não sei por que eles esperam algo de mim,
Eu que não lhe vivo dentro.
Querem que eu preto ou branco,
E eu cinzento no vazio dos seus olhos sem fundo,
Que não conseguem reconhecer a minha cor real.
Não sei o que me dizem aqueles dedos barulhentos,
A desenhar no ar realidades que não exitem,
Que não podem existir.
Não me apontam para o caminho que eu quero,
Eu que não quero nenhum caminho,
Não quero ter que escolher,
Simplesmente porque não tenho que escolher.
Continuar está bem, basta a interrupção inevitável.
Cumpri com o que esperavam
E nunca me senti fiel aos meus desejos,
Cumpri e nem os conhecia,
Aos dedos, aos olhos, tantos, a fazerem de deus,
De lei que não está escrita em nenhum lado,
Nem faz sentido algum,
Mas tem que se cumprir,
Porque assim esperam.

19.03.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

quinta-feira, 18 de março de 2010


Vozes Que Crepitam

Vozes amigas que crepitam como a lareira
Nas noites solitárias e frias de Inverno, na vila,
Com a geada a congelar todos os problemas até à manhã,
Ou durante o Inverno, onde o Sol não chega.
Vozes amigas que crepitam, mesmo que caminhe só,
No dia frio de fim de Inverno,
Quase noite, com a noite a cair como um véu púrpura.
Um cheiro invulgar a lareira no ar,
Já que a cidade de cheiros viscerais poucos.
Ouço-os, como nas noites de festa no Verão,
Todos a subir por cima do som da música do baile,
Para chegar uns aos outros, depois de tanto tempo,
Depois de tantas saudades,
Depois de um Inverno tão longo e distante,
Tão parecido com uma morte que se sente.
Vozes amigas que dizem que está tudo bem e contigo
E nós também, obrigado, queres beber um copo
E vamos lá por que o Inverno vem, lá ao longe
E a distância, nem se pensa nela, quando se está perto.
Venham elas, que nós agora as bebemos todas.

18.03.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

domingo, 14 de março de 2010


Caretos

A máscara a abrir a porta para a liberdade,
Grotesca, a pôr um véu no humano coberto de franjas,
Que já não o é, porque é mais: É sagrado porque é pagão.
É o fim de um ser e o início de outro.
É a porta entre dois mundos.
É o que vem e o que foi, neste que é.
Um nu colorido e barulhento a chocalhar pelas ruas
Da terra atrás das raparigas férteis e disponíveis.
É a festa da renovação, uma oração à natureza,
Um pedido à terra para que traga um ano bom.
As chamas levam o passado,
Por que tudo o que já não, é inútil, não faz crescer,
Há que purificar a terra para o devir.
O Inverno não dura sempre, mesmo que volte,
Cá estaremos para o ano.
Um presente eterno, mesmo que longe do início,
Mesmo que os avós mortos e os filhos por nascer,
Também eles foram, também eles serão.
Hoje nós o presente, a eternidade mascarada,
Protegidos do mundo dos outros dias,
Donos da porta que é o tempo.
Amanhã os facanitos a olhar-nos por detrás da máscara,
E nós à espera que nos abram a porta,
Mas hoje nós o que eles querem ser um dia,
Os que têm as chaves todas a chocalhar.
Hoje somos os arautos da natureza,
Da vida que ela dá e tira.
O animal preso durante todo o ano,
Finalmente livre, como um diabo aos saltos,
Com licença sem pedido concedida, porque hoje é o dia eterno.
Hoje duas caras. Hoje as chaves para todas as portas.
Hoje dia da liberdade mais pura.
Com uma paz violenta a fazer mal sem maltratar,
Ninguém pode levar a mal aos deuses por um dia.
Venha o barulho e a confusão,
O caos de uma rajada de vento a levantar as saias,
Ou uma vara se ele faltar,
Porque hoje somos nós que abrimos a porta.
Venha a geada e o frio a despedir o ano,
Que nós de um mundo entre mundos,
De um tempo entre tempos.
Donos e senhores de todas as chaves do universo,
Do universo comum, da ruralidade de onde a humanidade nasceu,
Fiel e transcendente, com origem na origem,
Nas fornalhas do tempo, quando o homem nu,
Com franjas e uma máscara de madeira ou couro,
Atrás das portas para abrir o futuro à humanidade.
Hoje os males dos homens e dos deuses longe,
Protegidos por uma mística imunidade,
Com uma misteriosa força que faz as pernas saltar,
A garganta gritar, livremente, pelas ruas da terra fora,
Atrás do que se gosta mais:
Raparigas solteiras.
Hoje fazemos a regra: haja liberdade!

14.03.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

sábado, 13 de março de 2010


Miranda do Douro

Do alto de uma escarpa, a ser pequeno aos ombros do gigante,
A ver a água que passa, lá em baixo,
Entre a pedra serrada pelos milénios da vida: o Douro.
Entre um país e o outro, a mesma água, a que interessa,
Onde quase se reflectem as muralhas erguidas pelo medo de outros tempos,
Levados pela água que passa e sempre a mesma.
Mudam-se os tempos e a água corre a ser Douro, a cortar muros de pedra,
Que o homem aproveitou para chamar o país de cá e o país de lá.
Entre uma escarpa e a outra o que corre, o que é fluido e leva a vida,
Entre a aridez da pedra, com as rugas do tempo e o verde inesperado.
As aves no limiar do abismo a fazer a vida,
Para buscar a vida na vida que passa,
Entre dois terras, só porque o homem lhes deu nomes distintos,
Para depois ter que erguer outras muralhas,
Erguer outros medos, quando o do abismo basta,
Com a água lá no fundo a ser morte vista de cima.
E para onde vai? Onde se meteu?
Foi visitar vinhas, ondas verdes que escorrem pelos vales,
Até chegar ao dominó irregular e multicolor que entre pontes se equilibra há séculos,
Pontes das que tornam um lado parte do outro,
Porque nem tudo muros e medos a separar.
Vejo-o a passar, porque estou condenado a um lado,
Porque não posso fingir ser o tempo,
Desde a aridez da pedra, à terra de onde o vinho se espreme,
Às casas vizinhas da casa onde nasceu a ideia de um mundo global,
Como se a história da humanidade no correr das suas águas.
Os sinos da sede, até aqui, a lembrar-me que eu pequeno entre gigantes
Que não adoram nada, porque a água passa e é sempre a mesma.
As muralhas a envergonharem-me e eu a querer fingir ser uma ave que vive no limite,
Que atravessa fronteiras sem nome, sem papéis, sem medos, universal.
Do alto desta escarpa, a do meu lado, impossível ser o que corre entre,
Unindo o que os nomes separam,
Por que afinal, não há linha nenhuma entre a água que passa,
Sinto-me tão pequeno, aos ombros do gigante que vê a vida a passar,
Levada por um gigante maior que se estende pelo tempo, criando história,
Sem dar por isso, porque só o homem do lado da escarpa a ser pequeno.

13.03.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

quinta-feira, 11 de março de 2010


Chuva

Chove, mas não cai nada que se sinta.
Chove, mas nada húmido, nada se molha.
Chove, mas não chove nada,
É algo dentro a partir como se uma nuvem,
Só por que o peso demasiado,
Só porque tem que chover.
Silêncio. Nem gota se ouve contra a chão seco,
Contra uma folha de verde sedento,
Contra um insecto e o seu caminho interrompido.
Só o silêncio de algo a quebrar por dentro
E uma gota a querer ser,
A escorrer, quem sabe se salgada,
Quem sabe se sumo do que se partiu, por dentro,
A querer cair, mas a escorrer,
A rasgar um sorriso numa linha brilhante dos olhos aos lábios,
Que lambida e não chove,
Mesmo que por dentro.
Nada cai, ninguém vê, ninguém sente,
Só por dentro quem sente a chuva que fica
E pesa e faz com que o sal se canse de estar,
Faz com que o sal se case e se derreta em sorrisos tristes,
Diluído na desilusão, só porque não cai,
Só porque não se sente a ser algo húmido,
Que quase não molha,
Que chove, mas não chove,
Só porque demasiado peso a quebrar,
Sem olhos para dizer que também chove para mim,
Que eu te vejo essa chuva,
Que eu te sinto a chuva.

11.03.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

terça-feira, 9 de março de 2010




Formigas de Asa

ao meu primo Rafael


Ainda as formigas na terra onde não formigas,
Só passos que lhe caem, ainda no ar, sempre,
Com as formigas sem estarem mais, só porque foram tantas no crepúsculo,
Só porque a atenção para as asas se as tinham,
Para enganar os pássaros com uma fácil morte, mas para eles.

Agora nada. Formigas, só as sombras que elas deixaram,
Algures, na região occipital, como um teatro de sombras
Contra uma parede de osso onde tudo, o meu tudo e o tudo que é possível ser,
Quando os meus olhos se abrem e o mundo entra e fica...
Até quando? As formigas agora que o Sol já não se vê em lado nenhum,
Só as sombras crescem e um resto de calor no ar a permitir os passos,
Que caem na terra onde não formigas,
Só a antecipação de mais um passo,
Mais uma marca onde nada,
Sem formigas apesar das sombras dentro a confundirem-me.
Para quê? Já não interessa, a cabaça está cheia,
Amanhã os pássaros cairão no engano e serão formigas a fazer sombra.
A morte é só uma sombra que fica em nós quando não é a nossa sombra que nos cai nos olhos.
As formigas, tantas, enquanto caminho, eu com medo de as pisar,
Apesar de levantar os pés, a marca do passo e as formigas ainda a viver,
Cá atrás, dentro, onde a comichão me pede os dedos de uma mão,
Na nuca do embaraço quando uma palma, porque não há formigas e eu a vê-las.
Olha tantas, também as vês? O escuro a crescer e o tempo a ir-se,
Os olhos ou quem lhe diz o que ver, enganados.

As formigas de asa a crepitar dentro da cabaça,
Como um fogo vivo, colectivo, negro,
Num roçar de asas transparentes, reais e eu seguro que elas ali,
Na cabaça que na minha mão suada e eu sem a sentir,
Vendo as formigas que ainda insistem em se mostrar,
Sem estarem mais.


Rantasalmi

09.03.2010

João Bosco da Silva